49ª Maratona de Berlim

Cinco meses. Cinco meses exactos. Cinco meses de altos e baixos, incertezas e dúvidas. Mas também de perseverança e confiança no caminho que estava a trilhar e em como o mesmo iria conduzir ao sucesso. Dia 24 de Abril fui submetido a uma cirurgia na zona abdominal e dia 24 de Setembro, às 9:15, encontrava-me em Berlim, no bloco de partida de uma das maiores, melhores e mais rápidas maratonas do mundo, com o objectivo de correr mais uma muito desejada corrida.

Mas recuemos umas horas!

A manhã de uma maratona começa sempre bem cedo e, geralmente, não é muito bem dormida. Está não fugiu à regra – daí a importância de um bom descanso na tarde anterior – já que acordei constantemente noite fora. Normalmente surgem sempre alguns nervos e, devido à envolvência de toda a preparação, encontrava-me ainda mais irrequieto que o normal.

Nesta manhã, e para evitar confusões e muitos ajuntamentos, opto sempre por tomar o pequeno-almoço no quarto do hotel e assim comer aquilo a que já estou mais do que habituado! Todo o equipamento já estava preparado de véspera pelo que foi apenas vesti-lo e (depois de um sem número de idas à casa de banho…) descer para o lobby do hotel, ponto de encontro com a equipa da Endeavor

Fotos da praxe tiradas e seguimos, a pé, em direcção à zona de partida. Este Domingo presenteava-nos com condições quase perfeitas: estava fresco e bastante nublado. Mesmo o vento, que parecia algo intenso no dia anterior, tinha-me feito a vontade e amainado considerávelmente. 

Guardo sempre com especial carinho as diversas memórias destas caminhadas matutinas em direcção ao local de partida de uma maratona. Os atletas vão começando a surgir daqui e dali. Ao início poucos e, à medida que nos aproximamos, são cada vez mais, e mais, e mais! Uns mais nervosos e outros não tanto, uns mais rápidos e outros mais lentos. Cada um com os seus objectivos, uns que serão alcançados e outros que terão de ficar para outro dia. Mas todos unidos pelo amor incondicional a esta prática. Algo que se sente com muita força mas que dificilmente se consegue explicar! 

Chegados então à “vila de partida” despedimo-nos do grupo e segui apenas com o Diogo, o meu colega do GFD Running que, tal como eu, também iria participar na maratona. Fizemos uns alongamentos dinâmicos no sentido de aquecer um pouco o corpo (como referi estava uma manhã fresca!) antes de deixar a roupa no bengaleiro (ao contrário do que achei da feira do corredor, a logística dos bengaleiros pareceu-me extremamente bem organizada e eficaz). Foi então tempo de começar a fazer um aquecimento mais completo, com corrida e algumas rectas, de modo a deixar as pernas quentes e os músculos preparados para o  que aí vinha. A saída destas maratonas (nos blocos dos comuns mortais claro está) nunca é muito rápida mas queria estar capaz de conseguir meter o ritmo alvo mal tivesse espaço para tal.

O caminho para os blocos de partida – e no sentido oposto à eficiência dos bengaleiros – pareceu-me confuso. Estava alocado ao bloco B e confesso que me cheguei a sentir perdido sem saber bem para onde tinha que ir. Idealmente teria chegado um pouco mais cedo, e começado mais à frente, mas entre isso e não ter feito aquecimento nenhum venha o diabo e escolha.

Felizmente lá dei com o bloco de partida, já quase a abarrotar pelas costuras (o meu colega Diogo, que estava noutro bloco mais atrás só conseguiu entrar no bloco depois da prova começar!) mas furando aqui e ali por entre a multidão fui para o meio daquela gente. E foi logo aqui que teve lugar o primeiro grande momento (entre muitos) desta prova: deu-se lugar à apresentação dos atletas de elite estando reservado para o final o enorme Eliud Kipchoge. O broá que se ouviu daquela gente quando o seu nome foi dito foi, para mim, emocionante. Saber que um dos meus ídolos está pouco mais de 20, 30 metros à minha frente, prestes a participar na mesma prova que eu é, certamente, um dos momentos mais especiais desta minha “carreira” nas corridas (mal eu sabia que momentos especiais não faltariam dali para a frente…).

Começou então a contagem decrescente e, às 9:15 em ponto, foi dado o tiro de partida! Mesmo eu estando relativamente perto da linha de partida só passados quase quatro (!!) minutos é que cruzei a linha inicial e comecei, efectivamente, a minha prova. Nunca gosto de forçar demasiado o primeiro quilómetro o que, dada a quantidade de atletas mais lentos à minha volta, não foi difícil cumprir. O objectivo destes dez primeiros quilómetros era o de entrar, sem forçar, no ritmo de prova (e num estado/cadência mental também sustentável até final) e assim tentei fazer. Fui sempre ultrapassando outros atletas o que era relativamente fácil nas avenidas mais largas mas que rapidamente se tornava complicado assim que entrávamos em ruas estreitas e não foram poucas as vezes em que do nada me encontrava bloqueado e assim tinha que seguir durante algumas centenas de metros o que acabou por causar um ritmo de corrida algo instável. Ao nível dos abastecimentos, os mesmos eram um pouco confusos mas bastante geríveis (o mesmo não seria verdade mais atrás no pelotão, segundo os relatos que ouvi, já que a massa de pessoas era muito maior). O maior problema era mesmo o estilo de copos usados: aonde normalmente são usados copos de cartão, que permitem “apertar” o topo para facilitar beber aqui eram todos de plástico (alguns deles de plástico rijo!) o que dificultava em muito a tarefa. Ainda assim tentei sempre apanhar 1/2 copos para hidratar o máximo possível.

Volvidos os primeiros 10 quilómetros sentia-me muito fresco ainda. O ritmo não era o ideal, não por sentir que não o conseguisse fazer mas, sim, pelas constantes mudanças de velocidade que as ultrapassagens e os abastecimentos obrigavam. Ainda assim seguia confiante, tinha cumprido todos os abastecimentos bem como as estratégias de géis (um gel e uma cápsula de sais a cada 30 minutos). Continuei focado mas ao mesmo tempo a tentar absorver toda a envolvência da prova. Berlim não me pareceu, como cidade, especialmente calorosa mas não tenho nada a apontar quanto ao apoio nas ruas, durante a maratona. Cartazes, gritos de apoio e muita, muita música (muita dela ao vivo, cheguei a passar por algumas orquestras!) foram uma constante do início ao fim e foram, invariavelmente, uma fonte de energia essencial.

Chegou então o fim da primeira meia-maratona, um dos primeiros marcos importantes na maratona e uma distância a que se tem que chegar ainda a correr com relativa facilidade caso contrário os restantes 21 quilómetros serão, muito provavelmente, um martírio! Felizmente cheguei ainda a sentir-me física e psicologicamente bastante forte. O que via no relógio não era, no entanto, 100% do meu agrado. “Secretamente” tinha estabelecido como objectivo – o mais remoto – tentar fazer sub 2h50. Para isso, e para não ir demasiado rápido no início tentei chegar a meio com cerca de 1h25m45s o que equivale a um ritmo médio de 4:04/km (e cerca de 2h51m25s no final). Se passasse a meio com este tempo acredito que – e gostando eu de fazer splits negativos – conseguiria recuperar os cerca de minuto e meio de atraso e, assim, conseguir fazer o tempo alvo. A verdade é que passei à meia maratona com 1h26m51s (ritmo 4:07/km), ou seja mais de um minuto de atraso face ao objectivo! Não me sentia cansado mas a verdade é que todas as ultrapassagens e abastecimentos fizeram-me perder mais tempo do que gostaria e, apesar de talvez ter capacidade para tal, a última coisa que queria fazer era ziguezagues e arranques constantes. 

Deste modo, e com este objectivo praticamente hipotecado, decidi não remoer mais no assunto e focar-me pura e simplesmente em, muito progressivamente, aumentar o ritmo e tentar dar o meu melhor até final. Pensei que “bastaria” não quebrar no fim para sair daqui, mesmo assim, com um recorde pessoal enorme. A partir daqui parei também de comparar os splits (até então ia a comparar, km a km, o tempo que vinha a fazer com o objectivo alvo, via marcações que levava escritas no braço). O foco passou, exclusivamente, em chegar agora ao km 30 e, até lá, tentar aumentar um pouco o ritmo! Numa corrida bem gerida geralmente sinto que o período entre o km 21 e o 30 pode ser o mais crítico, algo que descrevo como a “terra de ninguém”.

É verdade que se diz que a maratona só começa a partir dos trinta quilómetros mas, para isso, é vital chegar lá ainda capaz e daí a importância de gerir bem o ritmo. Felizmente estava-me a sentir bem e os músculos não davam sinal: a única situação que tive foi sentir, a certa altura, alguma perca de mobilidade no tornozelo direito, levando a um impacto mais seco a cada passada. Não sei bem a que isto se deve (já me tinha acontecido num ou noutro treino – mas tive 2 ou 3 episódios durante a prova que, felizmente, foram sempre debelados em poucas centenas de metros). Os ritmos de 4:06~4:07/km que tinha feito na primeira metade melhoraram e agora seguia, a cada quilómetro, já sempre abaixo de 4:03~4:04 e ainda com a sensação de estar a controlar! Só queria chegar ao quilómetro 30 para “largar a âncora” e acelerar ainda mais!

E assim foi! Volvidos 30 quilómetros sentia-me ainda com muita força e agora, mais que nunca, era altura de ganhar coragem e começar a andar a sério. Nesta altura os atletas já estavam bastante dispersos pelo que era fácil andar ao ritmo pretendido e sem ficar bloqueado. Fui-me sempre focando nos atletas à frente e em passá-los um a um (creio não estar a exagerar ao dizer que, nos últimos 12 quilómetros, não devo ter sido ultrapassado por mais do que 4 ou 5 pessoas) o que acabava por dar um ânimo enorme. O apoio nas ruas, com o aproximar do fim da prova, também aumentava de tom e foi sempre uma dose extra de motivação ter pessoas a gritar pelo meu nome! Procurei não descurar os abastecimentos e não falhei nenhum à excepção do penúltimo: segui durante praticamente 2 quilómetros com uma rapariga que ia também muito bem, ora puxava eu, ora puxava ela e não quis perder aquele “comboio” por um abastecimento já tão perto do fim. A estratégia de géis foi também sempre cumprida: 30 em 30 minutos à excepção do último, que tomei às 2h20 de prova. Durante este trecho – crítico – da prova só pensava em chegar ao quilómetro quarenta já que a partir daí a coisa já estava “quase” feita!

Cheguei então ao quilómetro 40 e para aqui levava um truque na manga: este penúltimo km é composto por múlitplas (6) curvas a 90 graus e fui sempre fazendo-las em contagem decrescente – qual chegada em alta montanha num Tour de France! Com a primeira curva feita procurei focar-me apenas nos próximos 100 metros à minha frente. 4 curvas. As pernas já estavam pesadas mas ainda assim não sentia músculo nenhum a querer prender. 3 curvas. Sentia-me ainda com forças e o facto de estar a conseguir acelerar – num claro registo contrário ao do pessoal à minha volta, que parecia abrandar. 2 curvas. Está quase! Mais um pouco. Aqui já seguia à vários quilómetros abaixo de 4:00/km, muitas vezes a 3:55 e ainda sentia que tinha margem para mais! 1 curva. Quase! Passei o pórtico do quilómetro 41 e eis que chegava à Bundesstrasse, a partir daqui já era sempre a direito! Lá ao fundo já vi os portões de Brandeburgo e, um pouco depois a meta!

Aquando desta última curva, e vendo os inúmeros apoiantes de cada lado da rua um pouco silenciosos “meti-me” com eles, pedindo algum apoio. Retribuíram. E de que maneira! Num dos momentos – se não o – mais inolvidáveis desde que corro, o barulho que fizeram foi espetacular e fiz praticamente todo este quilómetro sempre junto às baias de segurança, com bastante gente a dizer o meu nome (que estava escrito no dorsal claro está) e com alguns high-5s pelo meio! Corria abaixo de 3:50/km, a dar tudo, mas quase numa espécie de transe em que o cansaço passou para um plano completamente secundário.

Passei os míticos portões de Brandeburgo e, com cerca de 350 metros para o fim, olhei pela primeira vez, desde a meia-maratona, para o relógio e para tempo que levava de prova (até então vinha concentrado principalmente nos ritmos) e percebo que ainda deveria ter margem para fazer abaixo das 2h e 51 minutos. Foi então o momento de ir buscar as forças que tinha e que não tinha e acelerar ainda mais. Não sei bem a que ritmo ali corri mas sei que os últimos 500 metros foram feitos a 3:40/km! 

Via lá ao fundo o tempo no cronómetro a passar e, em simultâneo, à minha esquerda via também o Eliud Kipchoge – vencedor pela 5a vez em Berlim – subir ao pódio! Como não amar este desporto?!

30 metros…20 metros….10 metros….E… A Meta. Depois de uma operação há precisamente 5 meses atrás e uma preparação muito atribulada com fascites e até uma micro-rotura num quadricipe (entre várias outras coisas) acabava de cruzar a meta em Berlim com um tempo final de 2 horas, 50 minutos e 52 segundos. Foi uma chegada extremamente emocional. O caminho percorrido até aquele momento tinha sido bastante complicado e várias vezes duvidei se sequer conseguiria começar a prova. Fazer uma melhoria de tempo assim era algo que me deixava muito incerto (durante o último mês estive bastante indeciso na estratégia que queria adoptar para a prova e, só mesmo na terça-feira anterior, é que acabei por definir algo mais concreto!) e conseguir fazê-lo foi uma satisfação inexplicável. Todos os momentos bons e maus, todos os sacrifícios feitos, culminavam ali e em retrospectiva, é agora muito fácil dizer que tudo valeu a pena e que repetiria tudo outra vez!

Depois de me recompor minimamente recebi a tão desejada medalha e, tentando andar sem parar muito (as dores viriam mais cedo ou mais tarde!) fui receber o kit pós prova e beber uma, muito desejada, cerveja! Sem álcool o que muito provavelmente era a escolha acertada 🙂 Tempo de ligar à família que, tinha eu a certeza, havia acompanhado a prova do início ao fim. O apoio deles, presencial ou à distância é sempre essencial e muito sentido! Após recolher as minhas coisas do bengaleiro (que novamente funcionou muito bem) fui logo em direcção ao hotel para me manter em movimento. Depois daquelas quase 3 horas a correr não queria de todo parar por completo e os cerca de 15 minutos até ao hotel eram o ideal para começar a limpar um pouco as pernas!

Banho tomado, mais alguns telefonemas feitos e, depois do meu colega Diogo também regressar (fez 3h16. Muitos parabéns!) foi tempo de começar, então, a celebração e o não menos importante passear da medalha! Durante a tarde, e no rescaldo da prova, procurei andar o máximo possível para que o estrago no dia seguinte não fosse tão grande. Ao longo do dia recebi inúmeras mensagens que me deixaram bastante comovido. Percebi que bastante mais gente lia os meus relatos/diários semanais do que pensava! A noite acabou ainda com uma pequena festa organizada pela Endeavor no bar do hotel onde foi possível voltar a ver alguns colegas do grupo e partilhar as histórias de sucesso de cada um!

Em jeito de conclusão, e num sentimento muito semelhante ao de há um ano atrás, em Nova Iorque, posso afirmar que para além dos tempos feitos, ritmos, treinos e afins a corrida também me tem dado muito mais e, uma dessas coisas é certamente dar a conhecer muita gente boa e que partilha esta “maluqueira” pelas corridas! Foi com grande satisfação que re-encontrei o João Russo que também tinha participado em Nova Iorque no ano passado. Este ano, por lesão, não poderia correr mas ainda assim estava em Berlim e que, ao quilómetro 39 da prova gritou “Vai Luis!!” e me ajudou imenso! Obrigado! Conheci ainda pessoas com a Marylene e o Jorge que iam tentar qualificação para Boston e que, com um recorde pessoal enorme, o conseguiram fazer. Muitos parabéns!

Até chegar a Berlim tive o apoio de um sem número de pessoas. Pessoal do GFD e da equipa do GFD Running. Amigos como a Rita (que daqui a pouco menos de duas semanas irá correr a Maratona de Chicago!) e o Vítor com os quais treinei, desabafei e recebi conselhos e que foram muito importantes ao longo deste percurso. E por último a família. Os meus pais e irmã têm-me apoiado incondicionalmente ao longo destes anos e, quer me acompanhem de perto numa prova, ou à distância e a milhares de quilómetros, o seu apoio é sempre sentido e, sem dúvida alguma, essencial. Obrigado. (entretanto a minha irmã disse-me que gostava de começar a correr. Quem sabe um dia ainda fazemos uma prova juntos ❤️)

“Maratona é vida. Tem altos e baixos. Quando estás a percorrer os 42 quilómetros há muitos obstáculos. Assim como na vida. Quando encontras situações difíceis, encara-os como desafios. E aí é onde está o sucesso. Quando estás a correr, e dificuldades surgem, por favor continua! Insiste, e insiste, e insiste. E vais conseguir superar. Desafia-te a ti próprio”

Eliud Kipchoge – Bi-campeão olímpico, recordista da maratona, primeiro humano a correr a maratona abaixo das 2 horas e, desde Domingo, vencedor por 5 vezes da Maratona de Berlim

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